Contributo da carne de bovino para a segurança alimentar mundial
A investigação sobre segurança alimentar sugere que são poucos os países que sofrem de insegurança alimentar no que se refere a proteína. Mas não estará a ser subestimada a importância da qualidade da proteína? O Dr. Vaughn Holder, diretor de investigação em ruminantes na Alltech, é o entrevistado deste episódio do podcast ‘Ag Future’ para debater o papel que a digestibilidade desempenha na obtenção de uma métrica precisa sobre proteínas e segurança alimentar mundial e o impacto positivo que os bovinos têm na saúde das pessoas e do planeta.
Esta é uma transcrição editada e traduzida do episódio do podcast Ag Future com o Dr. Vaughn Holder. Entrevista conduzida por Tom Martin, gravada durante a Conferência Alltech ONE 2022. Clique nos links seguintes para ouvir a entrevista em inglês: Podcast da Apple, Spotify ou Google.
Tom Martin: Como caracterizaria a segurança alimentar mundial atualmente?
Vaughn Holder: Essa é uma pergunta muito importante para começar esta conversa, Tom, porque é importante saber onde estamos antes de decidir se precisamos fazer algo sobre a situação. Acho que é muito importante que olhemos para este tema.
Vamos a isso. Paul Moughan é um investigador numa universidade na Nova Zelândia e foi ele quem descobriu que a forma como estamos a olhar para a segurança alimentar mundial atualmente é provavelmente incorreta e comprovou isso mesmo em 2021. Basicamente, ele e a sua equipa têm estado a olhar para a quantidade de proteína que as populações consomem, designando-a de base de proteína bruta. Ou seja, é basicamente a quantidade total de proteína que essas populações consomem comparada com a quantidade de proteína de que precisam.
Na nutrição animal sabemos disso há muito tempo, e por isso é interessante da perspetiva de um nutricionista animal, mas precisamos de corrigir a proteína que estamos a ingerir até à quantidade que podemos realmente absorver e o nosso corpo consegue utilizar. Nesta perspetiva, passamos de um pequeno número de países afetados por insegurança alimentar para, provavelmente, quase metade do planeta afetado por insegurança alimentar em proteína, porque a correção está a ser feita tendo em consideração a fraca digestibilidade principalmente das proteínas vegetais para nós em enquanto espécie humana.
Porque é importante, quando falamos de segurança alimentar, incluir a qualidade da proteína na equação?
O nosso corpo necessita de uma determinada quantidade de proteína que podemos ingerir e utilizar.
Uma proteína é uma proteína não importa a sua origem, ou há diferenças entre proteínas derivadas de plantas vs. animais?
Sim há diferenças. As proteínas de origem animal são geralmente proteínas completas. Geralmente são altamente digestíveis porque estão sob a forma que o nosso corpo precisa. É a forma como os animais as armazenam.
Qual é a sua opinião sobre a carne e o leite derivados de plantas e sobre a hipótese de um dia virem a substituir os produtos convencionais?
Esta é uma conversa muito interessante porque temos de ter muito cuidado com a forma como falamos sobre a substituição da carne e do leite convencionais. Acho que não faz mal se falarmos em substituí-los em termos da comida que comemos, do sabor da comida. Mas temos de ter muito cuidado ao afirmar que a carne e o leite à base de plantas estão efetivamente a ser produzidos. Por outras palavras, não são uma fonte de produção alimentar. São feitos a partir de alimentos existentes que temos dentro dos nossos sistemas e essencialmente misturados em receitas para obter o sabor a carne e a leite. Isso não é problema por si só, mas se começarmos a substituir a produção de proteínas por processamento de proteínas, vamos ter um planeta faminto muito rapidamente.
Então, como é que os ruminantes se enquadram na alimentação mundial?
Como nutricionista de ruminantes, sou um pouco tendencioso, mas os ruminantes são essencialmente os centros naturais de reciclagem do mundo. Transformam todas as coisas que não podemos usar, todos os nutrientes do mundo que estão presos nestas plantas - em ervas, subprodutos e também desperdício alimentar -, permitem-nos uma segunda oportunidade de usar esses nutrientes, de os voltarmos a integrar nos nossos sistemas e de sermos capazes de os utilizar através dos próprios ruminantes.
Pode haver apenas alguns países que enfrentam desnutrição proteica, mas para muitos outros há questões e preocupações sobre a qualidade da proteína que as suas populações estão a consumir?
Sim. Essa questão é central na investigação do Paul Moughan, e isso significa que, numa base de proteína bruta, há poucos países inseguros em proteínas. Mas quando levamos em linha de conta a qualidade, mais de metade do mundo é subnutrido em proteína.
Que implicações tem isso na saúde humana?
Há implicações enormes, particularmente no desenvolvimento das crianças. Tivemos um orador na conferência ONE, esta semana, que falou especificamente sobre o papel da proteína, qualidade das proteínas e desenvolvimento cerebral em bebés. É criticamente importante tanto para o desenvolvimento cerebral como para o desenvolvimento do próprio corpo. O nanismo é obviamente um problema muito, muito grande em nações onde a segurança proteica não é o que deveria ser.
Tem sido interessante. No decorrer das entrevistas que fizemos nos últimos dias, tem havido um tema recorrente sobre como estamos a despertar para a importância da comida na nossa saúde e até no que sentimos. Acho que não pensamos assim no dia-a-dia.
Não, certamente que não, mas a comida está no centro de tudo. É a interação, é a interação direta entre nós e o nosso ambiente.
Devia fazer sentido, mas acho que não nos apercebemos.
Não é preciso muito para recuar e pensar no porquê de fazer tanto sentido, Tom, porque é tudo o que vai para os nossos corpos.
Certo. Muitas indústrias de produção alimentar geram subprodutos. Em vez de permitir que esses subprodutos se tornem resíduos, alguns são fornecidos à indústria pecuária como alimento para animais?
Sim. Hoje dei uma palestra sobre a utilização destes subprodutos pela indústria dos lacticíneos. Há dois factos a ter em conta. Os subprodutos - cerca de 40 toneladas métricas por ano – são usados na indústria láctea e por isso têm outra hipótese de entrar no nosso sistema alimentar, convertendo em nutrientes que podemos realmente usar.
O segundo facto, Tom, é que se não houver gado para usar esses subprodutos, eles acabam em pilhas de compostagem ou em aterros. E como subprodutos que entram em pilhas de compostagem, eles vão gerar cinco vezes mais gases com efeito de estufa do que se fossem utilizados na alimentação de uma vaca e 49 vezes mais gases com efeito de estufa se acabarem num aterro. O papel que os bovinos desempenham para manter esses subprodutos fora do quadro ambiental de gases com efeito de estufa é um papel de que não falamos muito.
Quando estamos a falar de subprodutos, há subprodutos dominantes na indústria?
Sim. Depende da região do mundo, na América do Norte, provavelmente o subproduto mais relevante são os grãos para destilagem. Investimos muito na produção de etanol neste país (EUA), para subsidiar a indústria de combustíveis, e há uma enorme quantidade de subprodutos gerados pelo bioetanol. É provavelmente o mais relevante, mas também há os convencionais, como o bagaço de soja ou de colza. São estes subprodutos que usamos como base de muitas rações de nutrição animal.
Quais são as vantagens e os benefícios da utilização de subprodutos para combater os efeitos das emissões de gases com efeito de estufa nas alterações climáticas?
Como referi anteriormente, é sobretudo evitar que os subprodutos vão parar a aterros e a pilhas de compostagem. Reduz a pegada de gases com efeito de estufa. Parece paradoxal, certo? Todos nos dizem: "Alimentamos gado, e quando alimentamos gado, isso gera metano", mas estes subprodutos se não forem utilizados para alimentar os bovinos vão gerar quantidades muito superiores de metano e os nutrientes que poderim gerar perdem-se.
Alguma consequência não intencional deste processo?
Sobre o uso de subprodutos por gado?
Sim.
Acho que já está em uso há tempo suficiente para sabermos muito bem o que fazem no gado, e está realmente bastante bem quantificado.
Voltemos a falar sobre proteína de qualidade. Quando uma sociedade que tem défice de proteína na sua alimentação transita para fontes proteicas de maior qualidade, o que acontece? Que tipo de mudanças ocorrem na população?
É interessante. Tivemos um orador na nossa sessão sobre bovinos de carne no início da semana que falou sobre (como) se pudéssemos corrigir a insuficiência proteica nos países onde ela existe, o QI médio da população mundial aumentaria 10%. Podem imaginar os efeitos na economia ao nível da diminuição do nanismo e do aumento do desenvolvimento cerebral sobretudo nos países mais pobres. Espera-se que estes países saiam da pobreza, mas se estão presos numa situação em que têm um físico e um cérebro longe do potencial, isso é muito difícil.
Agricultura, alimentação e clima estão muito relacionados. Como é que resolvemos a insegurança alimentar, dando resposta também à crise climática e à necessidade de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa?
Acho que o mundo assume que estas coisas estão em direções diametralmente opostas, e não é assim. À medida que aprendemos a melhorar a produção alimentar, eliminamos necessariamente o desperdício. Quanto mais conseguirmos melhorar a produção, menos desperdício é gerado no processo de produção de proteína. Temos feito isto desde o início. Sei que parece uma saída para a agricultura dizer: "Isto é o que temos feito desde o início", mas é o que temos feito desde o início. Só temos que nos tornar um pouco mais focados na componente ambiental que passou a assumir uma importância central, a par da segurança alimentar.
O impacto ambiental pode fornecer uma nova proposta de valor para a agricultura?
Acho que isso vai acontecer eventualmente. A agricultura está numa posição única na medida em que é o único setor que captura carbono para produzir, neste caso alimentos. A nossa indústria está a capturar carbono e a transformá-lo em comida, por isso estamos a meio caminho. Somos a única indústria que captura carbono para viver. Eu acho que certamente não há outra indústria que exista na escala e na interface entre o carbono e a Terra como a agricultura faz, por isso a resposta à sua pergunta é “sim”. Só que vai ser preciso sistemas de crédito de carbono para financiar muitas destas coisas.
Quão perto estamos disso?
Muito perto e acho que há alguns motores de mercado que vão impulsionar isso. Lugares como a Europa têm sistemas de comércio de carbono, tal como também a Califórnia, por isso está a acontecer a diferentes velocidades consoante as regiões, mas acho que não vai avançar da forma como o mundo prevê até que todos entrem no mesmo programa de comércio de carbono internacionalmente.
O que mais o entusiasma atualmente no setor onde trabalha?
Na Alltech trabalho com um grupo de nutricionistas especializados em ruminantes e olhamos muito, muito de perto para os bovinos. Uma grande mudança que ocorreu connosco, provavelmente nos últimos dois anos, desde que trabalhamos com um grupo de Ecologia na Florida, é mudar a nossa mentalidade sobre o que é a unidade de produção. Em vez de olharmos para a vaca como a unidade de produção, estamos a olhar para um ecossistema como uma unidade de produção, porque não queremos olhar apenas para o que a vaca está fazendo - o que está entrando e saindo da vaca - mas o mais importante é o que está entrando e saindo do ecossistema.
Quanto carbono é capturado? Quanto carbono vai sair? Precisamos de saber o que o ecossistema está a fazer, por isso temos de ter uma mudança de mentalidade na forma como pensamos sobre isto e pensamos sobre (o) ecossistema de produção proteína, onde os bovinos são apenas uma da peças desse ecossistema.